21 de junho de 2009

Alô criançada, o circo chegou!

Festival Mundial de Circo em Belo Horizonte. Hoje houve apresentação de um grupo francês, Les Apostrophés, no Parque Municipal. Um quarteto mambembe, que realizava acrobacias com objetos simples, como uma bengala, caixas, um livro e baguetes de pão. Aliás, foram vários os números com baguete (eu falei que eles eram franceses?). Num deles, depois de comer um pedaço do pão, um dos atores joga um cigarro pelas costas a fim de apanhá-lo pela boca, tal qual fazemos com uma bolinha de tênis (pegando com a mesma mão que fora lançada, não com a boca!). E depois acende-o com um fósforo da mesma maneira, no ar! Impressionante! Mais impressionante ainda foi a incipiente – e felizmente ofuscada pelos aplausos – vaia do vulgo anti-tabaco. Provavelmente acharam que houvesse apologia ao fumo naquilo tudo. Santa-paciência, Batman! Ô povo chato...

É interessante notar o que se pode fazer com a banalidade à sua volta, desde que se tenha destreza. Tais números requerem habilidade. Aliás, habilidade precisou o público para mudar de lugar. Estratégia para prever onde será o próximo número. Eles mudavam de lugar a cada quadro! No final das contas, o espectador tipo-ideal-da-escolha-racional assiste apenas a metade do espetáculo, preferindo renunciar a um quadro para conseguir um lugar de ótima visibilidade, visto que "visibilidade no próximo espetáculo" é inversamente proporcional a "assistir todo o espetáculo".

10 de junho de 2009

Homo intervallum

tempos não escrevo, sequer visito esse blog. A vida tem corrido como um eterno intervalo – "ficções de interlúdio", diria Fernando Pessoa. Mas é assim mesmo: tudo toma um ar de eterna espera, como se a peça teatral de que se constitui a vida ainda estivesse para acontecer. Assim como o Brasil, país do futuro, também sou um homem do quase: aquele que tem tudo pra ser, mas não é, que está próximo, mas não chega; aquele que desiste a duas braçadas da praia. Resta o sonho de que, como o Brasil, o futuro nos pertence – otimismo de perdedor.

A questão é que não damos valor aos intervalos. Queremos ver as coisas acontecerem, o jantar pronto, o palco montado e os atores encenando. Mas enfrentar a preparação, sem a certeza da estréia – e mais, com um histórico de não-estréias – é angustiante. Por que a realidade do cinema e do romance são mais vívidas, enquanto o intervalo pro café e pro cigarro, que é a vida, é tão mais cinza? Por que misturamos o que é necessidade e o que é desejo, e queremos o que é desejável com a força da necessidade? Por que querer a lua com a força de ter fome? Eis a perversão.

Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam formas que na vida se não encontram; são contudo sonhos, de que se acorda, que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.
A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.

Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá contudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana próprio.

Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta – estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade – um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento, o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.

Nada me satisfaz, nada me consola, tudo – quer haja sido, quer não – me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.

--Bernardo Soares