11 de outubro de 2009

Enfim-fim: foi, fomos, fundo...

Os fragmentos abaixo são a narrativa da última semana, quando viajei com mais três colegas realizando um survey (aplicando questionários) para o LAPST - Laboratório de Pesquisa em Sociologia do Trabalho. O objetivo era obter mais informações sobre os pequenos e médios produtores rurais e o impacto do PRONAF - Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Famiiliar nas suas vidas.


05/10 - PIRACEMA

Chegamos a Piracema por volta de meio-dia, depois de duas horas de atraso na saída prevista para as 8h e que só aconteceu às dez. Um prelúdio dos inumeráveis imprevistos da viagem. Também erramos a entrada para a cidade. Por sorte o retorno na rodovia (BR-381) era perto, cerca de 9km adiante. Almoçamos e fomos procurar o técnico da Emater, nosso contato que iria nos indicar onde encontrar os produtores rurais que buscávamos. Seu Zé Roberto não gostou muito de nossa chegada naquele dia, pois nos esperava no fim da semana. Segundo ele, iria nos preparar um mapa com a localização dos produtores da região, pra não nos perdermos e encontrarmos o maior número possível. Com o adiantamento da chegada, ele não podia nos ajudar muito. Mesmo assim nos deu uma direção onde poderíamos encontrar alguns, e depois eu saí com ele pela cidade na tentativa de encontrar outros. Encontramos um. Já passava das quatro horas, seu Zé Roberto prestes a largar o expediente e os outros três pesquisadores ainda sem voltar das fazendas. O técnico insistia que não podia fazer muito pela gente, pois não imaginava que viríamos agora. Se tudo correra bem, ainda faltaria 16 dos 20 questionários a fazer na cidade. Os telefones celulares não davam sinal, e eu fiquei impossibilitado de saber como estava o resto da equipe. Seu Zé Roberto já se despedia e eu pensei que o dia já terminara fracassado. Pouco tempo depois Raquel me liga com uma indicação de uma produtora na cidade. Não a encontro, mas consigo agendar uma entrevista pra mais tarde com outro produtor. Já é quase noite e encontro seu Zé Roberto, já no carro próprio (e não da Emater) que me leva ao encontro de mais dois produtores. Reencontro o pessoal e conseguimos mais entrevistas à noite. Finalizamos o dia com cerca de 15 questionários! Já cansados, mas com uma esperança para o dia seguinte que contrastava com o horizonte pessimista da chegada (depois do contato com o técnico da Emater que, a despeito de suas palavras, nos ajudou bastante, realizando mais do que seu trabalho como técnico, nos auxiliando além do seu horário de expediente), procuramos um hotel. Quartos razoáveis, baratos. Café da manhã: café, leite, pão e bolo. Contudo, a responsável pelo hotel era de uma languidez terrível, de olhar medroso e de uma voz que mais parecia um gemido ou lamento em suas respostas mal pronunciadas.

06/10 – CRUCILÂNDIA

Acordamos às 6:30h (esse seria nosso horário habitual de despertar durante toda a semana), tomamos um café rápido, pedimos a nota fiscal e seguimos novamente para a Emater a fim de terminarmos a cota de questionários. Em Piracema nos demos conta da dificuldade de conseguir nota fiscal (oficial, com CNPJ e outras formalidades que contadores adoram) em cidades pequenas. Para o pequeno comerciante é um prejuízo (e também pra o grande, mas para o pequeno o custo marginal é maior) emitir nota fiscal regularmente, tornando-se alvo da Receita Federal. Não é possível (para nós) prestar contas de tudo. Não é saudável financeiramente (para eles) prestar contas de tudo. O Estado não consegue ter ciência nem controle total de cada ação do indivíduo. Ainda bem.

Terminada a cota, partimos depois do almoço para Crucilândia (durante toda a viagem eu ira confundir o nome da cidade com Criciúma, cidade catarinense). Às 14h, já na estrada de terra que liga as duas cidades, paro numa pequena casa de tijolo mal rebocada para realizar a primeira entrevista no município. Uma mulher aparentando pouco mais de 30 anos me recebe timidamente, com seus quatro cachorros e três gatinhos. Ela diz que recolhe esses animais, abandonados que são (por outros animais) naquele trecho da estrada. Descubro que tem não trinta, mas vinte e quatro anos. Fica envergonhada quando pergunto se é casada ou solteira. Segundo ela, não é casada (de papel passado), mas mora com o companheiro que é separado (mesma condição de Elisabete, quase 50 anos, que encontraria em Bonfim. Classifico ambas como casadas). Para as pessoas do interior, ser casado formalmente, de “papel passado”, é muito importante e significativo. Ao fim da entrevista peço um copo d´água e vejo os três gatinhos de que me falara presos numa gaiola (bem maior do que aquelas onde ficariam se estivessem numa loja de animais) e pergunto por que estão ali: “É porque acabei de lavar e pus eles pra secar...se eles fica solto o [cachorro] grande come...”. Suely tem um cuidado maternal, a seu modo, com esses animaizinhos. A roça envelhece as pessoas.

Já cansado, com chuva e sem guarda-chuva, faço a última entrevista do dia com um distinto senhor que termina de retirar cana de uma carroça num pequeno barracão próximo da casa sede. Seu Tião tem 72 anos, um corpo franzino e uma risada espirituosa. Lembrou-me uma versão masculina da minha avó. Vida sofrida, muito trabalho e uma resignação alegre. Numa entrevista que dura em média cerca de 30min ou 40min, fiquei duas horas (só no questionário!) com seu Tião. Não havia como cortar suas digressões: suas falas sobre a dificuldade do trabalho no campo na época atual, que sempre terminavam com uma gostosa risada; sobre a dificuldade (e custo) de arrumar alguém para trabalhar com ele e a dificuldade atual das novas gerações permanecerem no campo; sobre um filho seu que não queria mais “mexer na lida” na roça (“mas a gente não pode prender, né? Tem que fazer o que gosta...”). Sobre o outro filho, que esse sim ajudava-o, e que apareceu no final ajudando-o inclusive a responder o questionário de forma mais “objetiva”. Gostaria de poder conversar mais com seu Tião, sem questionário; ouvir mais aquele senhor que não fez outra coisa na vida senão plantar milho, mandioca e tirar leite, que ainda hoje leva de carroça para vender na cooperativa da cidade. Um senhor que planta “3 litros” de “lavoura permanente” – “lavoura perene” no questionário, mas quem vai entender isso? – e recebe gentilmente um estudante mal identificado que pediu pra fazer “umas perguntinhas” e só “passava fôia e fôia e fôia... quase um caderno!” – ouvi-o dizer no outro dia de manhã, quando entregava leite na cooperativa, brincando com outro produtor que eu também entrevistava. (P.S.: ter uma plantação de 3 litros de milho parece não fazer sentido. Mas é a área que se consegue plantar com uma garrafa e meia, de coca-cola 2 litros, cheia de milho. Pra que saber isso em hectares? As coisas funcionam assim. As pessoas sabem disso lá).

Encontramos uma pequena pensão para dormir por volta das 20h, a pior de toda viagem. Dormimos às 23h.

07/10 - BONFIM

Acordamos ás 6:30h novamente e fomos em busca de uma padaria, pois não havia café onde dormimos. Em seguida voltamos à Emater, cujo técnico não encontramos no dia anterior. Seguimos com ele a pé rumo à praça em frente à igreja e ele já foi logo apontando: “Ali tem um produtor rural, aquele ali é também... ali tem mais outros dois...”. Fechamos a cota, almoçamos e seguimos para Bonfim também por estrada de terra.

Primeira crise-conflito pessoal no campo (o campo no campo): somos perguntadores profissionais. Somos agentes aplicadores de um survey – mesma matriz etimológica de suveiller: vigiar, exercer o controle, manter a ordem. Somos agentes do inquérito, sugadores de informação cujo destino temos uma vaga idéia. Somos colegas dos fiscais, investigadores e inquisidores. Ademais, qual o retorno que damos ou daremos a essas pessoas tão gentis, desconfiadas a princípio, mas muito receptivas mesmo ao serem invadidas na privacidade e sossego das suas residências? Mal sabemos dar informações sobre a pesquisa, além de visar “conhecer a realidade (sic) dos produtores rurais do estado de Minas Gerais bem como os impactos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familair – o PRONAF”. Sem contar o constrangimento de não saber explicar o que significam termos técnicos do questionário, em perguntas como “o Sr.(a) faz uso de CARPIDEIRA?” (seriam aquelas mulheres pagas para chorar em velórios alheios?), ou “o Sr.(a) faz uso de TERRAÇOS?” (para descansar ou fumar um cigarro, talvez?). Vergonha de fazer perguntas repetidas de um questionário mal feito. Os pequenos agricultores não dominam a linguagem dos agrônomos e veterinários. Os entrevistadores não participam da elaboração do questionário. Maldita Divisão Social do Trabalho. Maldita Alienação Social do Trabalho.

Em Bonfim não encontramos o técnico da Emater, e resolvemos seguir sozinhos, por caminho indicado pelos nativos. Informaram-nos da existência de um lugar, um povoado perto, pertencente a Bonfim, onde se localizavam diversos produtores rurais, bem próximos um do outro, a distâncias que poderíamos percorrer a pé. Era o nosso Eldorado, nossa Xangrilá dos questionários! Ficamos esperançosos de terminar a cota e seguir para Brumadinho ainda naquele dia. Claro que não encontramos o lugar – que provavelmente não existia –, andamos bastante, tomamos chuva, encontramos muitas casas vazias (era feriado na cidade e muitos produtores partiram pra Belo Horizonte) e fizemos menos questionários do que de costume. Como diria Malinowski, não se precisa de muito para realizar o trabalho de campo: apenas não seja um idiota completo.

Na volta para a cidade, já à noite e exaustos, procuramos como de costume lugar para dormir. Olhamos o preço da primeira pensão e ficamos de voltar depois. Estávamos famintos e iríamos comer primeiro. Não nos preocupamos, pois nos informaram da existência de duas pensões na pequena cidade que contava com algumas casas históricas preservadas. Depois da pizza, já passava de 21h e fomos conferir a outra pensão. Ao contrário do que imaginávamos, não havia quartos. Voltamos para a primeira. Um antigo e grande casarão, ao lado de um posto de gasolina. A porta entreaberta com alguns adolescentes no beiral, conversando, provavelmente antes de voltarem para casa depois da aula à noite. Entramos na casa-hotel e só encontramos hóspedes. Leve pânico de não termos lugar pra dormir naquele dia. Chovia. Informam-nos que seu Dito, o responsável, mora em frente. Tocamos campainha e nada. Ele mora no segundo andar. Gritamos. Enfim um senhor nos atende, mas diz não ter quartos. Insistimos, dizemos que apenas queremos um lugar para dormir e nos esforçamos para dar a entender que não somos turistas ou jovens boêmios. Seu dito desce com quatro toalhas e dispensamos duas, pois apenas dois de nós estavam sem toalha. Pagamos adiantado, dizendo que sairíamos cedo no outro dia e que estávamos muito agradecidos. Tal qual uma trovoada que traz a idéia de chuva, mas não necessariamente a água, pensamos que teríamos que dormir no carro (ou encontrar outra alternativa) naquela noite.

08/ 10 – IGARAPÉ

Acordamos como de costume às 6:30h. Pela primeira vez, não tenho certeza se quero realmente levantar da cama. O dia amanheceu chuvoso, um resfriado se insinua nas minhas vias respiratórias e eu gostei do cobertor. Mas tenho que me levantar pois ainda há muito o que fazer. Há café e pão na mesa. Raquel já está tomando café. Eu vou ao banheiro. Danielle está já arrumada, porém estirada na cama, possivelmente se esforçando para que o corpo obedeça ao dever também. Volto para o quarto e é agora que Douglas acorda. Ele é mais prático para a vida. Eu tenho de acordar mais cedo pois sou muito devagar, principalmente na parte da manhã. Foi a partir de ontem que nos conhecemos mais uns aos outros. Douglas, além de aplicador, também é nosso motorista. Já foi policial (não de rua, mas de escritório) e está acostumado a fazer pesquisa de opinião no mercado. Sujeito de poucas palavras, muito prático para a vida e que tem interesse em ciências políticas. Provavelmente foi o que mais aplicou questionários na viagem. A Danielle eu já conhecia de vista, mas nunca havíamos conversado. Ela gosta de fotografia, arte e sociologia. Muito crítica, muito singela e com um ótimo senso de localização. Ela tem um gato também, que se chama Tito. Contei a ela sobre o Montito, meu gato. A Raquel faz mestrado, acho que no IUPERJ. Garota batalhadora, determinada, que já foi do PET na UFMG e tem interesse em estudar mais sobre desigualdade social – a grande problemática brasileira. Eu, bem, sou esse pretenso antropólogo em constante conflito com o campo e que está a fumar por demais nessa última semana. Tomo o café e vou fumar um cigarro na varanda, contemplando a chuva. Quem dera pudéssemos ficar mais. A cidade me pareceu agradável. Termino o cigarro e a chuva diminuiu. Temos de sair agora. Não há mais um pão sequer na mesa do café. Espero que seu Dito compre mais, ou os outros hóspedes ficarão ressabiados.

Concluímos que o caminho pela estrada de terra para Brumadinho era inviável. Segundo os nativos do lugar, corríamos o risco de nos perder, pois teríamos que pegar muitos desvios devido a uma ponte que quebrou. Aconselharam-nos o caminho pela BR-381: mais longo, mas possibilitaria que chegássemos mais rápido. Resolvemos ir direto para Igarapé, e depois Brumadinho. Na cidade da água mineral, encontramos seu Quintela, técnico da Emater, que nos indicou alguns comerciantes próximos e deu o endereço de outros mais afastados. Igarapé, diferentemente das cidadezinhas que estávamos acostumados, era uma cidade maior, próxima da rodovia. Os caminhos são mais sinuosos e as distâncias são maiores.

Numa loja de insumos próxima à prefeitura entrevistei seu Miguel. Ele não residia na unidade produtora. Resmungava toda vez que o produtor rural hoje é menos valorizado do que um mendigo, menos até do que um cachorro vira-latas. O poder público, os políticos (e por que não, a classe média?) se comove mais com os últimos do que com o primeiro. Mais tarde entrevistei seu Takashi, um imigrante japonês de 72 anos (casado com uma mulher de 36) que veio para o Brasil na década de sessenta, quando, segundo ele, o governo japonês incentivava e financiava a imigração. Ele disse que era formado em sociologia também, quando me perguntou que curso fazia; e que trabalhara numa firma de publicidade em Tókio antes de emigrar. Outro japonês, que outro membro da equipe entrevistou, nos felicitou com alguns quilos de verduras e legumes, que dividimos em Belo Horizonte. Havia também dona Tereza, uma senhora de 62 que, como muitos outros, também sempre morou na roça, e se lamentava de não poder mais trabalhar, sofrendo de dores na coluna e outras enfermidades. Disse-me que antigamente se plantava muito mais coisas lá, até rapadura se fazia. Mas hoje o terreno está dividido, a conjuntura e as condições são outras. Contou-me que sentia muitas saudades da época de menina, quando podia trabalhar e plantar de tudo; e que recentemente, um de seus filhos a encontrou chorando, sentada no terreiro, lembrando desses tempos férteis.

Fim do dia, e é hora de encontrar pouso mais uma vez. Em Igarapé não devia ser difícil, afinal de contas a cidade era maior. Refletimos se valia a pena dormir lá ou seguir ainda na quinta-feira para Brumadinho. Resolvemos ficar, pois faltavam ainda oito questionários a serem aplicados em Igarapé. Perguntamos para algumas jovens na praça da cidade onde era possível encontrarmos uma pousada. Indicam-nos a direção de onde acabávamos de voltar da aplicação dos questionários. Havia algo estranho, ou ao menos devia haver outro lugar. Nesse meio tempo uma das meninas do grupo volta e pergunta: “É uma pensão que vocês querem?”. Eu usara o termo errado: pensão é diferente de pousada. Seguimos as primeiras instruções do caminho indicado e resolvermos perguntar de novo, pois já não lembrávamos. Resolvi usar o termo hotel dessa vez, e perguntei para um sujeito sentado em frente à igreja: “Você sabe me dizer onde tem um hotelzinho por aqui?”. Fugi do fogo pra fogueira: “Um motelzinho? Ah, tem um ali...”, ele respondeu. Não agüentamos, caímos na gargalhada e nem esperamos ele terminar. Agradecemos e seguimos. Resolvi adotar o termo pensão a partir de então. Assim não haveria erro. Paramos num bar e eu perguntei ao senhor onde encontraríamos uma. Ele esboçou um caminho, dizendo ora pra seguirmos e virarmos à esquerda, ora pra seguirmos e virarmos à direita. Ele parecia não estar muito certo quanto aos nomes das direções. O Douglas, para tentar ajudar, fez um sinal com as mãos dizendo “A gente vira pra lá (e dobrava a mão direita fazendo sinal de quem vai virar) ou pra cá (e repetia o gesto com a esquerda)?”. E eis a resposta da figura, espontâneo, surreal, surpreendente: “Não, é pra !”, apontando a mão pra frente, sem dobrar, indicando uma virada em linha reta, praticamente uma terceira via. Essa foi a melhor do dia.

Encontramos o tal hotel, que era caro. Perguntamos por outro e encontramos (talvez o mais razoável de toda viagem). Jantamos no restaurante localizado no térreo: um prato gigantesco, que eu cheguei a pensar que não iria conseguir.

09/ 10 – BETIM

Acordamos às sete horas dessa vez. Estávamos cada vez mais exaustos dessa rotina de perguntadores viajantes. Voltamos à Emater, com uma faísca de esperança de que muitos produtores passassem por lá. Seu Quintela disse que era imprevisível dizer quantos produtores passariam por lá naquele dia, se é que passariam. A essa hora muitos estavam no CEASA. Essa palavra brilhou. Como não pensamos nisso antes? Toda manhã um número considerável de produtores vai vender sua safra no grande mercado de horti-fruti. Produtores de várias regiões, inclusive Piracema, Crucilândia, Brumadinho, Igarapé e Betim. Não podíamos demorar, pois as atividades do mercado livre de produtores se encerram às 14h. As pessoas estão lá desde a madrugada, chegando muitas vezes por volta das 3h da manhã. Conseguimos chegar antes das 10h, e priorizamos os produtores de Igarapé e Brumadinho. Tive a impressão de estar na bolsa de valores das verduras: um grande galpão, muitas caixas, negócios feitos rapidamente e um grande painel luminoso com a cotação das hortaliças: hoje, ontem, no Rio de Janeiro, em São Paulo e aqui. Impressionou-me a enorme quantidade de caixas puxadas em carrinhos-carroças pelos carregadores, muitas vezes senhores de idade avançada. Impressionante também o machismo torpe de muitos entrevistados durante as entrevista, que se referiam às mulheres (suas esposas, filhas, colegas ou empregadas) com termos pejorativos, abusivos e de mal gosto. Notamos depois que parece ser uma constante naquele meio, quando ao pedir informação a uma transeunte, tive imensa resistência de que me atendesse ao abordá-la de dentro do carro.

Almoçamos no CEASA (creio que o melhor almoço até então) e seguimos pra Betim. A secretária da Emater (o técnico não se encontrava), muito ranzinza, não colaborou muito; não colaborou nada. Sorte que encontramos seu Zé Maria, creio que do setor responsável pelos assentamentos da reforma agrária, que nos indicou o assentamento Dom Orione, perto de uma mineradora. Depois de três paradas informativas-confirmativas, conseguimos chegar. Era nosso último dia, nenhum de nós estava disposto a perguntar mais nada no sábado e estávamos ansiosos por dormir em nossas camas. No assentamento abordei os lavradores em meio à suas hortas, trabalhando (eles e eu) entre um canteiro e outro. Seu Afonso foi muito gentil, disse que eu podia entrevistá-lo e pediu desculpas por não convidar-me para entrar e sentar, pois tinha muito o que fazer no cuidado com seus pés de alface. Agradeci e falei para não se incomodar. Em várias perguntas o humilde senhor pediu-me desculpas por não saber como me responder, por não saber se sua resposta me responderia a questão, se estava suficientemente clara. Não aceitei as desculpas, dizendo a ele que era eu quem devia pedi-las, por realizar um questionário mal feito cujas perguntas não são claras para os entrevistados. Ficamos num gentil duelo de compadres. Terminado o questionário eu o agradeci, e ele me agradeceu na esperança de poder me ajudar. Obrigado, seu Afonso, e me desculpe mais uma vez o incômodo, a perturbação durante seu trabalho – e as perguntas mal-feitas!

Pouco tempo depois entrevisto um meeiro, o único em toda a semana. No assentamento encontro mais uma falha no questionário: a categorização dos regimes de posse de terra não contempla os assentados: há apenas PROPRIETÁRIO, ARRENDATÁRIO E MEEIRO (PARCEIRO). Os assentados – e todos são esclarecidos quanto a isso – não são proprietários nem arrendatários, mas possuem um certificado de posse, de assentamento. Só depois de um tempo é que possuirão a propriedade, me explicaria depois dona Júlia, uma agricultora mãe de quatro filhos e presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Betim. Ela também é estudante de direito, na esperança de poder fazer mais por essa gente. 

Fim do dia, começa a anoitecer e meu coração bate, tanto por quem fica quanto por quem verei. Saudade dos meus, saudades dos que não têm ninguém – têm poucos, muito poucos – por eles. Saudade das conversas que não pude ter porque só fazia perguntar. Voltamos para Betim e paramos para abastecer. Decidimos que a jornada acabou: fizemos o possível e queremos nossas camas. Enfim uma cervejinha, um tira-gosto e as histórias da viagem. Percebemos que a dinâmica de acordar cada hora numa cama, numa cidade diferente e seguir viagem embaralhou nossas lembranças. Ficávamos confusos se tal episódio ocorrera em Bonfim ou Crucilândia, Piracema ou Igarapé. A semana também, apesar de passar muito veloz, se posicionava num passado outro. Os dias da semana estavam fora de ordem: nos surpreendíamos quando nos dávamos conta que tal fato aconteceu na quarta-feira, há apenas dois dias atrás, enquanto outros, ocorridos na segunda, pareciam mais próximos. A última semana, nosso passado mais recente, se tornava um passado distante, remoto, prematuramente antigo. Nem acreditávamos que acabara. Chacoalhar espaço-temporal que nos afetou de forma significativa.

Por último, mas não menos importante, tentamos estabelecer uma rota de entrega dos entrevistadores. Danielle desceria primeiro, depois Raquel, depois eu e finalmente Douglas, que ficaria com o carro. Chegar à casa da Dani foi fácil, com ela nos indicando. No entanto ela não estaria presente na volta, e tivemos lá nossas dificuldades. Mas já acostumados a percorrer ruas desconhecidas, e sem preocupação – pois enfim dormiríamos em casa sem acordar cedo – conseguimos pegar o caminho para a casa da Raquel. Passamos da entrada onde deveríamos virar. Depois de algumas voltas, direita, esquerda, direita, direita, conseguimos. Eu era o próximo. Enfim, fim. Acabou. Por sorte o Douglas sabia como chegar ao Caiçara, pois eu sou péssimo em direções. Fico feliz em conhecer essas pessoas próximas que eu desconhecia. Funcionamos bem como equipe. Foi uma experiência marcante, cansativa e diferente, essa semana no campo. Fomos longe, percorremos fundos meandros que nem imaginávamos. Foi distante, mas também próxima. Próxima e reveladora ao mesmo tempo: apesar de ter convivido de perto, e por relatos familiares, a realidade do campo, nunca fui tão afetado nem nunca senti o quão é difícil essa vida; o descaso do poder público; o problema dos atravessadores. E saber que são essas pessoas – e não aquelas que produzem soja e laranja pra exportação – que trazem a comida pra nossa mesa. 

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