29 de julho de 2011

Prudence is a rich ugly old maid courted by Incapacity

21 de julho – quinta-feira

São 18:20h e decido pegar o ônibus que sai às 19:30h para a cidade de Setubinha, situada no Vale do Mucuri, norte de Minas Gerais. Soube disso há 15 minutos atrás, quando imaginava que hoje é que iríamos nos organizar para viajar amanhã. Se não vou agora terei que embarcar amanhã às 5:30h e viajar durante 10h, inviabilizando o trabalho na sexta-feira. Pego um taxi para casa e arrumo a mala em meia hora. Uma calça, uma blusa, cinco pares de meia, seis cuecas e sete camisas, além de chinelo, toalha, nécessaire e um livro. Os últimos sobraram (levei dois livros pequenos e mal cheguei a abrir um) e os primeiros não bastaram (cheguei a comprar uma blusa na viagem). A previsão do tempo dizia que a temperatura era relativamente alta para um dia de inverno (mais elevada do que em BH), sem chuva e eu imaginei que o tempo seco seria ainda mais seco por lá. Descobri ainda no ônibus que uma blusa só seria insuficiente, pois venta muito à noite. No domingo choveu, a poeira das estradas de terra que teríamos que passar se transformou em lama e tivemos que comprar guarda-chuva e capas de chuva.

Chego à rodoviária e compro o último bilhete para Setubinha, faltando 20 minutos para a viagem. No fim deu certo. Eu e Laurinha conversamos bastante durante o translado. Faculdade, emprego, vida, absurdos. Foi ela quem nos informou que havia passagem direto para Setubinha, dizendo que iria embarcar hoje – André, o outro pesquisador, mais tranqüilo, deixou para ir amanhã. Já passa de meia-noite e ela dorme. Eu sinto frio. Subestimei a temperatura e carrego só um insuficiente casaco comigo. Chegamos em Setubinha por volta de 5:30h e um conhecido de Laura está à sua espera. Pêgo de surpresa e um pouco constrangido aceito o convite para tirar um cochilo na casa de Niltinho, que foi quem nos recebeu durante toda a estadia.

22 de julho - sexta-feira

Acordo por volta das 10h. Café da manhã: café fraco e açucarado, biscoito de polvilho, pão com manteiga. André, o terceiro pesquisador, chegará por volta das 15h. Ele embarcou hoje cedo. Preciso arrumar as coisas e me organizar para sair a campo.

Dona Aparecida – ou Tia Aparecida, como todos, inclusive Laura, a chamam – estará sempre conosco no café da manhã e no café da tarde, quando chegamos. Ela é vizinha e agregada da casa, talvez parenta de alguma forma. Por aqui os laços de parentesco por afinidade são tão ou mais forte do que por consangüinidade. Laura tenta me explicar um pouco a relação dela com Niltinho e Lena (moça que trabalha na casa de Laura), mas não me esforço para compreender. Tia Aparecida nos convida para a “Festa do Ausente” que acontecerá no próximo final de semana, em que todos os setubinhenses ausentes estarão presentes.

Ao meio-dia, depois de passar na prefeitura, conseguimos arranjar uma Kombi que nos levará a comunidade de Quaresma (ou “Coresma”, como é mais comum ouvir por lá), localidade atendida pelo Programa Travessia, que foi quem encomendou a pesquisa à Universidade. Vinte minutos depois chegamos a essa comunidade onde moram cerca de 300 pessoas, segundo nos informou Márcio, morador que nos guiou pelo local. Ele é uma referência para os moradores por lá, pois trabalha no posto de saúde e tem um pouco mais de instrução. Ao lado do posto há uma escola, uma capela e alguns trechos de rua pavimentada com blocos hexagonais. As pessoas não têm endereço e não há comércio no local, exceto por uma pequena vendinha, que vende biscoitos, bolachas, refrigerante, mas principalmente cachaça e conhaque. A Coca-Cola ainda não chegou por lá. O único refrigerante é Schin. Apesar disso, ficamos sem almoço nesse primeiro dia.

Fiquei comovido com Dona Maria, casada com Santo, mulher de 32 anos que mais aparentavam 60. Como muitas outras Marias, mãe de sete filhos. Seriam oito, se um não morresse ano passado antes de completar um ano de vida. Morreu porque “não tratou”, foi o que ela conseguiu explicar.

Encantei-me com dona Irene, também mãe de sete crianças e que ainda conserva no lote em que mora a antiga casinha de taipa de um único cômodo em que moravam ela, o marido e os filhos. Gostaria de tê-la fotografado sentada no fogão a lenha, com sua saia vermelha e blusa verde, aparentando, como todas as mulheres daquele lugar, muito mais idade do que diz a certidão de nascimento. Na sua singeleza maternal atendia à sua filha Adelaide, de apenas 3 anos, famigerada e atrevida, cedendo-lhe o peito para mamar. Uma cena ao mesmo tempo meiga e selvagem.

A noite começa a cair e eu Laura estamos voltando do campo. Ficamos preocupados com André, que de acordo com o previsto chegaria por volta de 17h. Passamos no guichê da Saritur (empresa que faz a linha Belo Horizonte – Novo Cruzeiro, passando por Setubinha) e perguntamos se não desceu alguém com as descrições de nosso colega. A moça diz que sim, que o rapaz desceu, comprou uma passagem e embarcou para Novo Cruzeiro, o ponto final. Estranhamos. Por que ele iria descer e comparar uma passagem para completar o percurso? Seria mesmo ele? A mulher não teria se enganado? Na casa de Niltinho tomamos um banho e saímos para jantar no único lugar que serve jantar, a pousada de Dona Margarida. No caminho encontramos André, que finalmente chega. Era ele mesmo que a mulher vira re-embarcando. Ele nos explica que continuou a viagem para poder sacar dinheiro lá, já que em Setubinha não era possível (descobriremos mais tarde que nem ele nem Laura sacaram o suficiente; por sorte eu trazia comigo todo dinheiro destinado a nossa ajuda de custo). Hoje é sexta-feira, mas devido ao trabalho parece que é segunda.

Depois do jantar passamos em um barzinho perto da igreja, onde alguns locais jogavam sinuca, para ver se encontrávamos a famosa pinga “cambão”, que Niltinho nos recomendara. Ele bebia todo dia, era alcoólatra, simpático, hospitaleiro, pai de mais de cinco filhos (com mulheres diferentes) e apaixonado por política, sendo cabo eleitoral do atual prefeito. No bar nos encontramos com Rogério, que conhecêramos mais cedo – ele tinha algum grau de parentesco com Lena, eu acho.

Fim da noite. Acolhida na casa colorida.

23 de julho – sábado

O plano era sairmos às 8h, mas eu acordei 8:20h. Laurinha também dormiu um pouco mais que a cama. Só o André, que chegou ontem e essa noite dormiu na pousada, acordou no horário.

Meu intestino me prega peças. Pouco antes de sairmos hoje de manhã uso o banheiro e a privada quase entope, devido ao volume de papel. Não havia cesto e a caixa de descarga, daquelas em que se puxa uma cordinha, me força a aguardar um loading para a segunda tentativa. Como demoro, o fantasma do inevitável bate à porta. Estávamos com pressa para sair e, para não atrasar, não tenho outra escolha a não ser sair em silêncio. Sentirei-me constrangido e envergonhado todo o resto do dia. A coisa se resolverá no dia seguinte, quando é a vez de André cair na armadilha. Ele pelo menos revelará que a fatalidade, impedindo mais vítimas.

Chegamos em Quaresma por volta de 9:30h. Depois de realizarmos uma entrevista no “centro”, segui um senhor que me indicou alguns nomes da lista de entrevistados da amostra. Caminhei na estrada de terra por cerca de trinta minutos. Casas afastadas, por entre as montanhas. Seu Mário e D. Eva, pacatos e religiosos; D. Olícia, a filha e o sobrinho, alegres e risonhos entre gatos, porcos e repolho para o almoço; Seu Anselmo e o silêncio de seus 76 anos, acompanhado docemente pela esposa trinta anos mais nova – uma serenidade que beira o esquecimento, um cuidado que beira a maternidade; D. Roseli-Roselia (o nome Roselia, errado, era o que constava na nossa lista, sendo Roseli o correto), despenteada e gutural, mal conseguindo compreender as perguntas enquanto seu filho de 4 anos brandia o facão na bananeira – ela, desesperada, se preocupava mais com a bananeira do que com o filho.

Volto para a vendinha, nosso ponto de referência, por volta das 16h e pego minha marmita. Meia hora depois meu intestino grita um segundo chamado da natureza. Paro. Penso. Resisto. Não poderei evitar. Minha sorte é que os banheiros, recentemente construídos pelo Travessia, são externos às casas. Saio correndo em direção ao banheiro ao lado da venda, largando meus papeis e a bolsa ao relento na paraça. Meu azar é que não há papel. Os guardanapos que costumo guardar no bolso foram de extrema valia agora.

São 17h e espero sozinho, escrevendo, a Kombi que nos levará de volta à Setubinha. Também espero por meus colegas e suas histórias. Gostaria de tomar um banho.

À noite ficamos sabendo que Amy Winehouse morreu, aos 27 anos. Kurt Cobain, Jim Morrison, Noel Rosa e outros grandes poetas também não chegaram aos 30. Cazuza morreu aos 31 e Renato Russo aos 35. Raul Seixas agüentou um pouco mais, mas não chegando aos 50 anos. Parece-me que todo grande homem realiza sua grande obra entre os 20 e os 30 anos. A época mais fértil, explosiva: o ápice da ousadia e do êxtase acontecem na década de 20. Depois disso, a eternidade ou a decadência. A glória ou o ostracismo. Quem não morre e permanece vivo corre o risco de viver esquecido como se estivesse morto.

Jantamos como de costume e na saída encontramos o pessoal do Cidadão Universitário, um projeto do estado em conjunto coma algumas universidades. Os alunos permanecem alguns dias realizando atividades, ajudando na solução e problemas e conhecendo os moradores das regiões mais pobres de Minas. Eles nos convidaram para ir a um barzinho onde se encontrava o resto do grupo, tomando cerveja e dançando numa pista ponde dezenas de raios verdes e vermelhos ziguezagueavam freneticamente. Tomo um conhaque, converso um pouco com o pessoal. Um deles, carioca, diz que nós três aparentamos típicos moradores da Lapa, no Rio de Janeiro, por causa da vestimenta. Deve ser o figurino Fafich, Cult, Indie, “Alternativo” e Tilelê. Tinha um pouco de tudo em nós. A conversa não flui, ao menos da minha parte. Sinto que estou amargo, sem muita paciência para com as pessoas e sem compartilhar desse entusiasmo samaritano. Por outro lado, sinto-me assediado por aquele traiçoeiro infante, filho de Afrodite. Receio que esse caldo possa fermentar e apodrecer, azedar, se conheço bem o estado em que me encontro.

24 de julho – domingo

Hoje fomos para Santa Rita, a ponta da ponta de Quaresma. Um lugar afastado, longe para se chegar a pé e difícil para se chegar de carro. Tivemos que arrumar uma moto que nos levasse. Ontem arrependi-me de não ter trazido a câmera fotográfica, para evitar o transtorno de carregar a bolsa. Então hoje fiz diferente.

Não esquecerei do clima florido da casa de Seu Vânio, onde cheguei recebido por seus seis ou sete filhos. O casal não estava em casa e preferi não entrar, apesar da chuva e da insistência das crianças. Aguardo sob um teto de palha, sustentado por troncos e madeira, ao lado da casa. Pouco depois chega Laurinha e me faz companhia. Logo em seguida o casal de lavradores chega e pela primeira vez me é ofertado um café na entrevista, que deixo a encargo da minha colega. Enquanto ela faz as perguntas para Seu Vânio, me deixo encantar pelas crianças em volta, risonhas e tímidas, chupando cana e se escondendo tal qual “bicho do mato”. Tirei algumas fotos e me arrependi de não ter tirado mais, do casal e da família inteira. Os meninos riem e eu rio com eles. Peço um pedaço de cana para chupar, para lembrar da infância, de quando meu avô descascava cana para mim e eu desconhecia que ele era quem é. A mulher me traz um pedaço enorme e um facão. Não passo vergonha e consigo descascar.

Pouco antes, numa entrevista à casa mais longe de Santa Rita, que foi por onde comecei, o sujeito que me levou, Márcio, também entrou para cumprimentar os moradores, já que os conhece. Uma menina apareceu e pediu-lhe “bênção”, ou simplesmente “bença”, como dizem. Também conservo esse costume até hoje e peço benção à minha mãe, minha avó e meus tios, quando os vejo e quando me despeço deles. Surpreendi-me quando logo em seguida a menina pediu “benção” a mim também. Quem sou eu para intermediar alguma benção para alguém? Além do ceticismo, não me acho minimamente louvável ou digno em qualquer aspecto. Não tive escolha senão dizer como de costume, “Deus te abençoe”. Senti-me vergonhosamente nobre.

Depois da entrevista aproveitamos uma breve estiagem e seguimos. Aguardo nossa carona na casa de Seu José Geraldo, que não faz parte da nossa amostra e não tem energia elétrica. Ele me conta as brigas por causa de terra, o trabalho nas fazendas de café, fala sobre política e sobre a vida sofrida.

Ao chegar na casa de Niltinho ele está de saída e me chama para tomar um gole de cachaça. Aceito o convite enquanto os outros vão tomar banho e tirar o barro dos sapatos. Bebo duas doses da cachaça local que já me deixam alto. Ele bebe conhaque Presidente. Como o tira-gosto de hambúrguer frito com bacon que nos é servido e já me levanto para ir embora. Apesar da insistência, Niltinho não me deixa pagar a conta.

25 de julho – segunda-feira

Essa noite sonhei com Laurinha. Estávamos numa festa e ela demonstrava desejo de ficar comigo. Nos retiramos para um canto e transamos. Meu inconsciente projetou meu desejo na figura dela. Vaidade ou insegurança da minha parte?

Acordamos às 7:15h e tomamos café, eu e André. Tia Aparecida acorda e passa um café com açúcar, dispensando o que havíamos feito sem. Todo aquele açúcar estava me dando refluxo, além dos problemas que eu poderia ter por causa da diabetes. Por isso, a partir de hoje, como acordamos primeiro todo dia fazemos sem. A cada dia que passa as pessoas se tornam mais simpáticas, entediantes e maçantes.

Como amanheceu chovendo e eu só trouxe uma blusa, saio para comparar alguns itens necessários. Guarda-chuvas e capas de chuva, para nós três. Uma blusa para mim. Não encontro nada barato. Ou algo muito fino e colorido, por R$ 25 ou um moletom com capuz, por R$ 50. Opto pelo segundo. Também compro anti-gripais e um pacote de bolachas para mim. No caminho do campo, fico pensando se estou arrependido ou não de ter pago o que paguei pela blusa. O preço do conforto.

Chuva e barro. Hoje começamos as entrevistas do grupo de controle. Como nossas primeiras opções ficaram de difícil acesso devido à chuva, chegamos num acordo que o melhor seria ir para Cabaceiras, comunidade a beira da estrada entre Setubinha e Novo Cruzeiro. Fomos eu e Laura, enquanto André seguiu para Quaresma a fim de terminar o grupo da amostra. Minhas costas doem devido à antiga má postura e às entrevistas que eu faço sentado, sem encosto e curvado.

O lugar é feio. As pessoas além de analfabetas são ignorantes e não têm banheiro. Ter banheiro é um sinal de civilização, assim como ter sapato, coisa que tampouco têm. Algumas mulheres de chinelo, alguns homens de botina. As pessoas parecem falar uma outra língua, não entendem, respondem pelo dever de responder, querem responder “certo”, divagam, fazem digressões, não entendem as malditas dupla-negativas de algumas perguntas, o que por sua vez é uma falha do questionário, já que se trata de gente simples. Apesar disso, Laurinha diz que encontrou pessoas que apesar do pouco vocabulário sabem se expressar bem, poetizam a seu modo. Sinto-me amargo como nosso café e uma tristeza fininha como a chuva começa a me molhar. Perguntaram-me hoje, depois de uma entrevista, se eu poderia ajudá-los. Isso me mortificou. Não posso. Apenas pergunto. Não sou ninguém ali, além de um perguntador, quase um agente do Estado. Todavia impotente, apesar do crachá e a cara de moço da cidade, moço do governo. Sugo informações e por vezes sorvo café. Sinto-me cada vez mais cansado. Sinto-me como Oxalá, curvado, apoiando-se em seu bastão. Compreensão, paz e morte.

A cachaça destrói as pessoas no campo, como seu Zé Lopes, que vive embriagado e inconvenientemente insiste em abraçar as pessoas. Hoje a tristeza procria. Quando chegamos em casa, Niltinho nos conta comovido a história de seu filho que morreu aos 19 anos, vítima de uma dengue hemorrágica mal diagnosticada. A cachaça parece ser seu remédio e sua pena.

Também lembrei-me de meu pai, que não bebia, mas morou na “grota” em sua infância. “Grota” é como se chama o lugar, muitas vezes escondido entre as árvores e perto do rio. Ele e meus avós também não tinham endereço naquela época. O tabaco foi a sua desgraça e sua alegria, assim como o foi para o pai dele, assim como o é para mim. Assim como a cachaça para outros. A “luita” desse povo da “grota” na suas casas de “adobro”. A vida. A morte.

Se a sexta-feira parecia segunda, a segunda parece sábado. Depois do jantar decidimos passar na escola, onde o pessoal do Cidadão Universitário está hospedado. Eles estão realizando uma festa hoje, com churrasco e tudo o mais. Chegamos lá e ficamos na pequena pista de dança formada na quadra. Oferecem-nos cerveja. Bebemos. Dançamos. André sugere tocar um tributo à Amy. Laurinha vai conversar com o DJ. A música não agradou ao pessoal, que segue ao ritmo do forró, funk, axé e outras músicas dançantes. Vou à cantina e preparo um rum com coca-cola e limão para mim. Laurinha comenta que tenho fumado demais e que até Niltinho já comentara. Eu concordo. Tenho bebido demais também. Não consigo ficar com as pessoas – e menos ainda comigo mesmo. Conversamos os três pesquisadores sobre nossas memórias, nossas vivências. Vida, sonhos, sexo. Laurinha nos conta seu sonho, que a perturbou. Não ouso contar o meu. Ridículo.

26 de julho - terça-feira

Ressaca. Acordamos pouco depois das 8h. Depois do café, saio à rua para comparar água de côco e mais anti-gripais para ajudar na dor de cabeça. Tomo dois e depois mais um.

Povo ignorante esse de Cabaceiras. Exceto Seu Manoel, que recebeu o estrangeiro. Ele também me convidou para o almoço, que aceitei. Caiu em boa hora, já que no final da entrevista eu já sentia minha glicose baixar e temi uma crise hipoglicêmica. Conversamos, bati fotos dele e da esposa, das crianças com roupas de cores vivas sentadas no fogão à lenha enquanto a chuva caia. Terminado o almoço eu aceito o café, para “tirar o sal da boca” como diz Seu Manoel. Hoje um dos moradores recusou a entrevista, pouco depois de a iniciarmos. Entrevistava o velho, ao lado de sua senhora e da filha com as crianças, todos à minha volta na sala. Em certo momento, a filha, que já havia me recebido de cara séria, disse “Não é para respondê não”. “O quê?”, indago sem entender se era isso mesmo que eu ouvira. O velho voltou a dizer a mesma coisa. Todos sérios e ressabiados. Volto a explicar o intuito da entrevista, releio a carta. “O sargento falou na rádio que não era para nóis respondê não”. Não insisto. Agradeço e digo que estão certos, eles estão no direito deles. Rumo para outra casa e pouco antes de terminar vem uma menininha, neta do senhor que recusou, dizendo “Meu avô pediu para o senhor voltar lá, que ele vai responder”. Eu digo que depois eu vou – mas não iria. É aí então que me dou conta das coisas: 1) eu estava de óculos escuros por causa do sol e esqueci de tirá-los ao me apresentar; 2) cheguei perguntando se eles sabiam onde havia casas com casais sem filhos ou moradores só, a fim de cumprir nossa cota. Tudo isso deve ter levantado muitas suspeitas. Encontro Laurinha e peço a ela para entrevistar o sujeito.

São 19h e em frente ao fogão a lenha – lareira do camponês – de Niltinho relembro vários momentos da minha infância. De novo as histórias de meu pai sobre a “grota”. Momentos da infância passados na roça. Brincadeiras com minha irmã: fazer barraca na sala, brincar de lego, de vendinha, ouvir discos infantis na casa da minha avó e interpretar espontaneamente as músicas. “Farofa-fá” é a que mais me recordo. Guerra de laranja podre com os primos. Guerra de brita com os amigos.

Hoje será nossa última noite. Finalmente comparamos a cachaça de “Cambão”, por R$ 5 o litro. Dois litros para mim, dois para André e quatro para Laura. Seguimos para a pousada de Dona Margarida e encontramos os Cidadãos Universitários confraternizando. Sentamos com eles na longa mesa, a comer pizza e beber cerveja. Selmo, funcionário da Copanor (a companhia de abastecimento de água de lá) que certo dia nos deu carona, conta a Laura sobre o problema da água em Cabaceiras. Segundo ele é chover e contar três dias que todos estão no posto de saúde, pois não respeitam o espaço mínimo entre as fossas e as cisternas, entre a água e a merda. “É chover e contar: um, dois, três. Todo mundo no posto de saúde. Vocês não beberam água lá não, né?”. Por sorte, não.

São 22:45h e já estou embriagado. O álcool faz aflorar a maldita carência. Meu intuito de uma vida celibatária não passa de uma vontade fraca. Laura nesses dias me aparece como uma flor: algumas vezes viva e exuberante, pronta para colher; em outras como pertencente a um jardim distante, que não é meu, passível apenas de admiração e talvez cuidado, quando há oportunidade. De todo modo uma flor impossível de colher. Nas minhas últimas experiências tenho vivenciado o amor, num sentido amplo, como cuidado. Amar, na sua plenitude e candidez, é também, mas não só, cuidar. Logo vejo que não me amo, já que não me cuido. Isso não é novidade para mim. O que me desagrada é que jamais aceitarei a solidão da forma como gostaria.


O varal da vida

A roupa desbotada

Mal lavada

Colorida


Pendurado sob o sol

Estirado na chuva

Estendido além da morte,

da criança e da viúva


Vida desgraçada e colorida

Desbotada e sofrida

O varal da vida é um espelho

Amarelo, azul e vermelho


27 de julho - quarta-feira

A ressaca hoje foi ainda maior. Mais água de côco e analgésico. Último dia. Já estou cansado, talvez não exatamente daqui, mas da nossa rotina de entrevistadores da pobreza. Hoje sairemos para a comunidade de Palmeiras, que fica ao lado da estrada que segue para Novo Cruzeiro, depois de Cabaceiras.

Fico comovido com dona Josefa, mãe de sete filhos. Alguns na verdade são netos e há uma que biologicamente não é dela, mas ela o acolheu no abandono – mas são todos filhos, de acordo com ela. Ao longo da entrevista ela chorou ao relembrar os períodos em que não teve nada para comer, nada para oferecer às crianças. Guarda com tristeza a frustração de ter vendido o voto (prática comum em qualquer cidade pequena) em troco de um emprego de doméstica que nunca se realizou. Sobrevivem do Bolsa Família, cerca de R$ 20 por mês para cada um. Fora isso, doações do dono da pousada, que segundo ela é um pai, um irmão. Terminado o choro, prossigo com a entrevista.

Almoçamos na pousada de Seu Tonão, torcedor do Palmeiras, que nos mostra várias peças antigas, como uma telha de 1931, “de quando as pessoas ainda pintavam com o dedo”, referindo-se à data gravada a dedo no barro; um cabide para guardar chapéus, de madeira, talhado a mão; um pedaço de arame farpado composto de três grossos fios, ao contrário dos frágeis que temos hoje. Antigamente, segundo ele, tanto os bois como os homens eram mais fortes. Hoje todos se corromperam.

Fico conhecendo um casal de negros, velhinhos, que moram numa casa de taipa. Quase não conseguem conversar. Ele, com o pé machucado, mal sabe seu nome. Lembra-se que é um nome bonito. A mulher traz a carteira de identidade e leio “Vicente Vital”. É sonoro. A esposa, que é quem responde a entrevista, chama-se “Eva”. O documento não traz o nome do pai. Vivem da ajuda dos vizinhos e de um mísero dinheiro que conseguem na época da colheita de café. Pergunto a ela se eles têm alguma coisa para comer em casa. Ela, do alto da sua dignidade, diz que sim. Durante a entrevista um vizinho deixa um saco de batatas e pede para o homem capinar um lote depois. Outro vizinho vai me confirmar a penúria em que vivem. “Pai, por que me abandonaste?”, questionou Jesus na cruz. Dona Eva e Seu Vicente, imagino eu, nunca questionaram. Como muitos outros, vivem a vida que a sorte lhes destinou.

Exercitando algum cristianismo que me resta, amadureço uma caridade que queria ter feito a Dona Josefa, mas cujo alvo é o casal de velhinhos da casa de taipa. Vou a venda e compro alguns mantimentos, como arroz, feijão, macarrão, óleo, açúcar e até café e biscoitos.

A Kombi ficou de nos pegar por volta das 17h. Espero sozinho na estrada. Já são 17:30h e o ônibus que vai nos levar à Belo Horizonte e para o qual já comparamos as passagens já passou com destino a Novo Cruzeiro. Ele vai voltar, passando em Setubinha às 19:30h. São 18h. André já apareceu mas Laurinha ainda não. A nossa condução já chegou, mas ela não. O motorista diz q vai então resolver outros assuntos e em 15 minutos volta. Começamos a ficar ansiosos e preocupados. Eu mais do que André, e acho que acabo influenciando a preocupação dele também. Ele é um sujeito calmo e nem vai embora hoje. Saímos correndo às 18:30h, tomamos um banho, mal nos despedimos. Mal agradecemos a enorme hospitalidade. Se bem que conseguimos entregar algumas fotos num porta retrato que Laurinha conseguiu comparar em Novo Cruzeiro, onde imprimiu as fotos. Corremos para pegar o ônibus. Ainda esperamos uns 10 minutos até ele chegar.

Dessa vez não passarei frio, pois vou com duas blusas. Na viagem eu e Laurinha falamos sobre as nossas famílias e alguns sujeitos singulares, pro bem ou pro mal, que todo mundo tem na sua. Já é meia-noite e ela dorme, enquanto eu ainda estou acordado. Vejo-a mexer e pergunto se está tudo bem. Ela não entende e falo mais perto. Ela volta a não entender e roubo-lhe um beijo, rápido e singelo. Ela volta a dormir. Eu volto a sonhar.

28 de julho – quinta-feira

Chegamos em Belo Horizonte pouco depois de 5h da manhã. Cada um pegou um taxi e seguiu para sua casa. Dormi e acordei achando que era sexta-feira, quando na verdade era quinta. Volto para minha vida langorosa e sem sabor, sem mal saber o que me aguardava no dia seguinte.

"O caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria", disse o poeta. Amém.

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