10 de junho de 2009

Homo intervallum

tempos não escrevo, sequer visito esse blog. A vida tem corrido como um eterno intervalo – "ficções de interlúdio", diria Fernando Pessoa. Mas é assim mesmo: tudo toma um ar de eterna espera, como se a peça teatral de que se constitui a vida ainda estivesse para acontecer. Assim como o Brasil, país do futuro, também sou um homem do quase: aquele que tem tudo pra ser, mas não é, que está próximo, mas não chega; aquele que desiste a duas braçadas da praia. Resta o sonho de que, como o Brasil, o futuro nos pertence – otimismo de perdedor.

A questão é que não damos valor aos intervalos. Queremos ver as coisas acontecerem, o jantar pronto, o palco montado e os atores encenando. Mas enfrentar a preparação, sem a certeza da estréia – e mais, com um histórico de não-estréias – é angustiante. Por que a realidade do cinema e do romance são mais vívidas, enquanto o intervalo pro café e pro cigarro, que é a vida, é tão mais cinza? Por que misturamos o que é necessidade e o que é desejo, e queremos o que é desejável com a força da necessidade? Por que querer a lua com a força de ter fome? Eis a perversão.

Quanto mais avançamos na vida, mais nos convencemos de duas verdades que todavia se contradizem. A primeira é de que, perante a realidade da vida, soam pálidas todas as ficções da literatura e da arte. Dão, é certo, um prazer mais nobre que os da vida; porém são como os sonhos, em que sentimos sentimentos que na vida se não sentem, e se conjugam formas que na vida se não encontram; são contudo sonhos, de que se acorda, que não constituem memórias nem saudades, com que vivamos depois uma segunda vida.
A segunda é de que, sendo desejo de toda alma nobre o percorrer a vida por inteiro, ter experiência de todas as coisas, de todos os lugares e de todos os sentimentos vividos, e sendo isto impossível, a vida só subjetivamente pode ser vivida por inteiro, só negada pode ser vivida na sua substância total.

Estas duas verdades são irredutíveis uma à outra. O sábio abster-se-á de as querer conjugar, e abster-se-á também de repudiar uma ou outra. Terá contudo que seguir uma, saudoso da que não segue; ou repudiar ambas, erguendo-se acima de si mesmo em um nirvana próprio.

Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja. Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o espetáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz, por fim, esse que abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem diminuído.
O campônio, o leitor de novelas, o puro asceta – estes três são os felizes da vida, porque são estes três que abdicam da personalidade – um porque vive do instinto, que é impessoal, outro porque vive da imaginação, que é esquecimento, o terceiro porque não vive, e, não tendo morrido, dorme.

Nada me satisfaz, nada me consola, tudo – quer haja sido, quer não – me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.

--Bernardo Soares

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