29 de agosto de 2011

cláudio

_ De onde você é?

_ Cláudio.

_ Não, eu não estou perguntando o nome do seu pai, mas de onde você vem.

_ Foi o que eu disse. Sou de Cláudio.

Qual filho de Cláudio, essa pequena cidade do centro-oeste mineiro com seus 25 mil habitantes, nunca passou por uma situação parecida? Um estranhamento quanto ao nome do antigo vilarejo, que reza a lenda foi batizado em homenagem a um escravo que descobriu um ribeirão, o “Ribeirão do Cláudio”. Pouco depois tornou-se um distrito da cidade de Oliveira, o Distrito de Aparecida do Cláudio. E agora, em 30 de Agosto de 2011, comemoraremos os 100 anos de emancipação da nossa cidade: a cidade de Cláudio.

Desde então a cidade se desenvolveu bastante, tornando-se conhecida como o maior pólo fundiário da América Latina, concentrando uma grande quantidade de indústrias metalúrgicas que são a base da economia claudiense. A cidade apresentou um grande crescimento econômico nos últimos 10 anos, com um aumento de 76% da renda per capita da população, segundo dados do último censo. Mas esse dinheiro tem sido usado para quê, a não ser comprar automóveis?

Cláudio tem uma densidade automobilística alta, mas uma carência de atividades, principalmente para a juventude. Não moro em Cláudio há cerca de sete anos, e a impressão que eu tinha era como se houvesse transporte, mas não houvesse para onde ir. Exceto se você tivesse a possibilidade de um sítio, ou de ir a Divinópolis ou Belo Horizonte, não havia muito o que fazer. Parece-me que as coisas estão mudando, e eu soube a pouco tempo atrás que já houve um avanço muito grande, com a recente construção da Casa das Artes. Todavia eu creio que se pode fazer mais, como construir um Centro Cultural de qualidade, investimento substantivo em atividades culturais, como teatro, dança, música, ou mesmo cinema e também turismo ecológico. A cidade tem potencial para tanto, tem demanda dos jovens. E tem dinheiro.

Em matéria de cultura, Cláudio não deveria ser conhecida apenas como “a cidade dos apelidos”, como tantas vezes apareceu na mídia. Há muita gente talentosa por lá. Há muita gente que tem buscado educação e cultura nas redondezas, já que a cidade não oferece. Na minha época de adolescência, o máximo que tínhamos eram os velhos “bailes” no Automóvel Clube à noite, e os velhos encontros diurnos nas piscinas do mesmo Automóvel Clube, encontros um tanto quanto restritos, pois limitados aos sócios e seus amigos. Não sei se continua assim.

A cidade apresenta muitas possibilidades, pois como eu disse, há demanda – da parte dos jovens – e há recursos – da parte dos empresários e da prefeitura. Os jovens (e também os não tão jovens, mas principalmente esses) buscam por cultura, num sentido amplo. Buscam por bons lugares para sair à noite, onde encontrem mais do que bebida. Buscam por eventos culturais, por arte, por música, por dança, por teatro. Cláudio não é só “fundição” e apelidos. Temos uma bela e antiqüíssima festa de Congado, temos belas serras e belas matas, temos gente talentosa que canta, dança, pinta e escreve. E, um caso a parte, temos muita gente que joga – e bem – xadrez, aquele jogo visto por muitos como signo de inteligência.

Seria interessante que na comemoração desse centenário a cidade desse mais oportunidade aos seus filhos, mais acesso a esses bens imateriais. Como bom mineiro, Cláudio agora tem a faca e o queijo na mão.

28 de agosto de 2011

mineiridade

"O anseio de atingir a esquiva perfeição configura a chamada mineiridade."
Murilo Rubião

14 de agosto de 2011

domingo

Domingo, 15h, Centro de Belo Horizonte, Av. Afonso Pena após a "Feira Hippie".

13 de agosto de 2011

faces do céu



"Hipócritas, sabeis discernir
entre as faces do céu, e não
conheceis os sinais dos tempos?"
Mateus 16:3


um dia descerá do céu um urubu
ornamentado como um papa
com sua mitra colorida
fulva, azul, vermelha

não trará desgraças
nem bençãos
não julgará os ímpios
nem compensará os santos
não condenará os pecadores,
traidores, violentos, fraudadores
nem arrebatará os benevolentes,
os crentes, piedosos, temerosos e prudentes
nenhum deles terá purgação, paraíso ou punição
reino algum, eterno ou finito ou transcendente ou imanente

o reino será do urubu
urubu-rei
será ele a lei
que a tudo regerá
rá-rá-rá!

abrirão-se sete portas,
em cada porta sete símbolos
em cada símbolo um canteiro
de quatro mil flores
guardadas a sete chaves
penduradas no bico
de cinco aves
que esperam
por uma combinação
em claves
de dó,
de sol
de dia

quem quiser salvar a sua vida que a perca,
pois não pode me dar a China
o que já não o pode me dar
minh' alma
palavras do p(r)o(f)eta
com olhos
de urubu
uh, uh, uh!

madruvá
urubu
comerá

rá!rá!rá!

Vai! Vai! Vai! Vai! Vai! Vai! Vai! Vai! Vai! Vai!

Não vou!...

10 de agosto de 2011

azulão


AZULÃO

Vai Azulão
Azulão companheiro vai
Vai ver minha ingrata
Diz que sem ela
O sertão não é mais sertão
Ah, voa, Azulão
Azulão, companheiro vai...

8 de agosto de 2011

dança selvagem


Corta Jaca, Tango Brasileiro (C... por cimusfilms

"[...] Aqueles que deveriam dar ao país o exemplo das maneiras mais distintas e dos costumes mais reservados elevaram o corta-jaca à altura de uma instituição social. Mas o 'Corta-jaca', de que eu ouvira falar há muito tempo, que vem a ser ele, Sr. Presidente? A mais baixa, a mais chula, a mais grosseira de todas as danças selvagens, irmã gêmea do batuque, do cateretê e do samba. Mas nas recepções presidenciais o 'Corta-jaca' é executado com todas as honras da música de Wagner, e não se quer que a consciência desse país se revolte, que as nossas faces se enrubesçam e que a mocidade se ria!"

(Rui Barbosa proferiu essas palavras na tribuna do Senado, em 1911, para o então presidente Hermes da Fonseca. A "Águia de Haia" ficou chocada ao ver Nair de Teffé, mulher do presidente, tocar a música de Chiquinha Gonzaga ao violão em uma festa no Palácio do Catete, in WERNECK, Humberto, "Santo Sujo", p.52)

Praticamente o mesmo que seria dito pela Veja se a Dilma colocasse um funk pra tocar no Palácio da Alvorada.

la parole est volé

Não sei por que
lembrei-me dela
tão flor
tão bela

Não, não sei por que
foi só um pensamento
leve como o vento...

a de sempre


— Até beber cerveja ficou difícil — queixa-se.

— O preço?

— Não. A variedade. O
embaras du choix.

— Mas se você já estava acostumado com uma...

— E as novas que aparecem? Em cada Estado surge uma fábrica, se não surgem duas. Cada qual oferecendo diversas qualidades. Você senta no bar de sua eleição, um velho bar onde até as cadeiras conhecem o seu corpo, a sua maneira de sentar e de beber. Pede uma cervejinha, simplesmente. Não precisa dizer o nome. Aquela que há anos o garçom lhe traz sem necessidade de perguntar, pois há anos você optou por uma das duas marcas tradicionais, e daí não sai. Bem, você pede a cervejinha inominada, e o garçom não se mexe. Fica olhando pra sua cara, à espera de definição. Você olha para cara dele, como quem diz: Quê que há, rapaz? Então ele emite um som: Qual? Você pensa que não ouviu direito, franze a testa, num esforço de captação: qual o quê? Qual a marca, doutor? Temos essa, aquela, aquela outra, mais outra, e outra, e outras mais. . Desfia o rosário, e você de boca aberta: Como? Ele está pensando que eu vou beber elas todas? Acha que sou principiante em busca de aventura? Quer me gozar? Nada disso. O garçom explica, meio encabulado, que a casa dispõe de 12 marcas de cerveja nacional, fora as estrangeiras, sofisticadas, e ele tem ordem de cantar os nomes pra freguesia. Até pra mim, Leovigil? pergunto. Bem, o patrão disse que eu tenho de oferecer as marcas pra todo mundo, as novas cervejas têm de ser promovidas. Não mandou abrir exceção pra ninguém, eu é que, em atenção ao doutor, fiquei calado, esperando a dica... Não quis forçar a barra, desculpe.

— E aí?

— Aí eu disse que não havia o que desculpar, ordens são ordens e eu não sou de infringir regulamentos. Os regulamentos é que infringem a minha paz, freqüentemente. Mas para não dar o braço a torcer, nem me declarar vencido pela competição das cervejas, concluí: Leovigil, traga a de sempre.

— Não quis dizer o nome?

— Não. Minha marca de cerveja — "minha garrafa", digamos assim, pois a individualidade começa pela garrafa — passou a chamar-se "a de sempre". Não gosto de mudar as estruturas sem justa causa, nem me interessa dançar de provador de cerveja, entende?

— Mas que custa experimentar, homem de Deus?

— Só por experimentar, acho frívolo. Os moços, sim, não encontraram ainda sua definição, em matéria de cerveja e de entendimento do mundo. Saltam de uma para outra fruição, tomam pileques de ideologias coloridas, do vermelho ao negro, passando pelo róseo, pelo alaranjado e pelo furta-cor. Mas depois de certa idade, e de certa experiência de bebedor, você já sabe o que quer, ou antes, o que não quer. Principalmente o que não quer. E é isso que os outros querem que você queira. Tá compreendendo?

— Mais ou menos.

— Na verdade, não há muitas espécies de cerveja, no mundo das idéias. Mas os rótulos perturbam. Uns aparecem com mulher nua, insinuando que o gosto é mais capitoso. Bem, até agora não vi rótulo de cerveja mostrando mulher com tudo de fora, mas deve haver. Mulher se oferecendo está em tudo que é produto industrial, por que não estaria nos sistemas de organização social, como bonificação?

— Você está divagando.

— Estou. Divagar é uma forma de transformar pensamentos em nuvem ou em fumaça de cigarro, fazendo com que eles circulem por aí.

— Ou se percam.

— E se percam. Exatamente. 0 importante não é beber cerveja, é ter a ilusão de que nossa cerveja é a única que presta.

Sujeito mais conservador! Ou sábio, quem sabe?


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, em “De notícias & não notícias faz-se a crônica”, Livraria José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1974, pág. 137.

5 de agosto de 2011

HOME - Edward Sharpe & the Magnetics Zeros


[Her:]
Alabama, Arkansas,
I do love my ma and pa,
Not the way that I do love you.

[Him:]
Holy, Moley, me, oh my,
You're the apple of my eye,
Girl I've never loved one like you.

[Her:]
Man oh man you're my best friend,
I scream it to the nothingness,
There ain't nothing that I need.

[Him:]
Well, hot and heavy, pumpkin pie,
Chocolate candy, Jesus Christ,
Ain't nothing please me more than you.

[Both:]
Ahh Home. Let me come home
Home is wherever I'm with you.
Ahh Home. Let me go ho-oh-ome.
Home is wherever I'm with you.

La, la, la, la, take me home.
Mother, I'm coming home.

[Him:]
I'll follow you into the park,
Through the jungle through the dark,
Girl I never loved one like you.

[Her:]
Moats and boats and waterfalls,
Alley-ways and pay phone calls,
I've been everywhere with you.

[Him:]
We laugh until we think we'll die,
Barefoot on a summer night
Nothin' new is sweeter than with you

[Her:]
And in the streets you run afree,
Like it's only you and me,
Geeze, you're something to see.

[Both:]
Ahh Home. Let me go home.
Home is wherever I'm with you.
Ahh Home. Let me go ho-oh-ome.
Home is wherever I'm with you.

La, la, la, la, take me home.
Daddy, I'm coming home.

(Talking)
Him: Jade
Her: Alexander
Him: Do you remember that day you fell outta my window?
Her: I sure do, you came jumping out after me.
Him: Well, you fell on the concrete, nearly broke your ass, you were bleeding all over the place and I rushed you out to the hospital, you remember that?
Her: Yes I do.
Him: Well there's something I never told you about that night.
Her: What didn't you tell me?
Him: While you were sitting in the backseat smoking a cigarette you thought was gonna be your last, I was falling deep, deeply in love with you, and I never told you til just now.

[Both:]
Ahh Home. Let me go home.
Home is wherever I'm with you.
Ahh Home. Let me go ho-oh-ome.
Home is where I'm alone with you.

[Him:]
Home. Let me come home.
Home is wherever I'm with you.

[Her:]
Ahh home. Yes I am ho-oh-ome.
Home is when I'm alone with you.

[Her:]
Alabama, Arkansas,
I do love my ma and pa...
Moats and boats and waterfalls,
Alley-ways and pay phone calls...

[Both:]
Ahh Home. Let me go home.
Home is wherever I'm with you.
Ahh Home. Let me go ho-oh-ome.
Home is where I'm alone with you...

próximo ponto

trindade

Uma mulher para companheira,
Um amigo pra falar besteira,
Um emprego para pagar a feira.

Em nome do Pai,
do Filho
e do Espírito Santo.

Amém.

4 de agosto de 2011

olho vê, olho sente/ olho fala, olho mente


A fotografia, como toda arte, literatura ou antropologia se realiza como um processo de tradução. Sempre precário, sempre imperfeito. Sempre operando, por bricolagem e justaposição, a tentativa de dizer o indizível, o nebuloso, o maravilho, o incerto, o estranho e o inaudível. Um limar infinito, um trabalho de Sísifo. Maldição sedutora, tortuosa, esfuziante. Só o completa quem não se atém à completude. Sem Absoluto. Sem luto. Universos sem sóis, mas com estrelas brilhantes, luminosas, cintilantes. Só termina -- o interminável -- quem rumina o fragmento. Deve-se voltar ao campo -- à noite, de preferência!

3 de agosto de 2011

Strume&Drunk




"O verme perdoa o arado que o cortou."


Houve uma vez, palavra inaudita;

maldita. Post-scripta. Transcrita

ao pé do ouvido de um telefone sem fio,

Ao mesmo tempo cheio e vazio,

Constrito de frio,

Repleto de afeto,

Exagerado e discreto.


_ Quem foi você que ousaste gritar,

fazendo a terra tremer?

_ Quem foi você que ousaste abraçar,

meu corpo envolver?

_ Quem foi você que ousaste beijar,

puxando-me a ti, fenecer?


Phoder.


Fogo, fato, fogo, fato, fogo-fáátuo!

Amarelo, azul-turquesa.

Depois da morte toda beleza,

inclusive a marquesa,

vira estrume.


Como disse o príncipe louco:

O verme é o único imperador

Cevamos nós mesmos para as larvas

O rei e o mendigo são variações do menu


A

Mo

r

Te


Vai tomar no cu!

2 de agosto de 2011

Nº 13



Treize – j’eus un plaisir cruel de m’arreter sur ce nombre.* [Marcel Proust]

Le reploiment vierge du livre, encore, prête à un sacrifice dont saigna la tranche rouge des anciens tomes; l’introduction d’une arme, ou coupe-papier, pour établir la prise de possession.** [Stéphane Mallarmé]


I. Livros e putas podem-se levar para a cama.

II. Livros e putas entrecruzam o tempo. Dominam a noite como o dia e o dia como a noite.

III. Ao ver livros e putas ninguém diz que os dois minutos lhe são preciosos. Mas quem se deixa envolver mais de perto com eles, só então nota como têm pressa. Fazem contas, enquanto afundamos neles.

IV. Livros e putas têm entre si, desde sempre, um amor infeliz.

V. Livros e putas – cada um deles tem sua espécie de homens que vivem deles e os atormentam. Os livros, os críticos.

VI. Livros e putas em casa públicas – para estudantes.

VII. Livros e putas – raramente vê seu fim alguém que os possuiu. Costumam desaparecer antes de perecer.

VIII. Livros e putas contam tão de bom grado e tão mentirosamente como se tornaram o que são. Na verdade eles próprios muitas vezes nem o notam. Ano a fio alguém vai-se entregando a tudo “por amor” e um dia está lá como corpusbem corpóreo, na ronda das calçadas, aquilo que “para fins de estudo” sempre pairava somente acima delas.

IX. Livros e putas gostam de voltar as costas quando se expõem.

X. Livros e putas remoçam muito.

XI. Livros e putas – “Velha beata – jovem devassa”. Quantos livros não foram mal reputador, nos quais hoje a juventude deve aprender.

XII. Livros e putas trazem suas rixas diante das pessoas.

XIII. Livros e putas – notas de rodapé são para uns o que são, para as outras, notas de dinheiro na meia.

* “Treze – tive um prazer cruel em deter-me nesse número.”

** “O redobramento virgem do livro, ainda, presta-se a um sacrifício de que sangra o corte vermelho do antigos tomos; a introdução de uma arma, ou corta-papel, para estabelecer a tomada de posse.”

(Benjamin, W. Rua de mão única. São Paulo: Editora Brasiliense, 2004, p. 33-34.)

1 de agosto de 2011

amar (é um) elo


"O ato mais sublime consiste em pôr alguém antes de si."

O rio da posse

Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa naturalidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguéns.

Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem que age, se tantas vezes se malquista com o homem que age, como não se malquistará com o homem que age e o homem que sonha no Outro?

Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio com escala pelos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes, [...]. Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca, encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz, como não pensar é a parte melhor de ser rico.

Olho para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos desavimos antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha demais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilíbrio da realidade, sofre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida (e do irreal do sonho com o sentir a vida irreal).

Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles com quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos.

O amor perde identidade na diferença, o que é impossível já na lógica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que se torna seu e não é. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia os amores todos que são os absurdiandos do amor.

No terraço antigo do palácio, alçado sobre o mar, meditaremos em silêncio a diferença entre nós. Eu era príncipe e tu princesa, no terraço à beira do mar. O nosso amor nascera do nosso encontro, como a beleza se criou do encontro da lua com as águas.

O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente?

O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada.

Metafísico. Mas toda a vida é uma metafísica às escuras com um rumor de deuses e o desconhecimento da rota como única via.

A pior astúcia comigo da minha decadência é o meu amor à saúde e à claridade. Achei sempre que um corpo belo e o ritmo feliz de um andar jovem tinham mais competência no mundo que todos os sonhos que há em mim. É com uma alegria da velhice pelo espírito que sigo às vezes – sem inveja nem desejo – os pares casuais que a tarde junta e caminham braço com braço para a consciência inconsciente da juventude. Gozo-os como gozo uma verdade, sem que pense se me diz ou não respeito. Se os comparo a mim, continuo gozando-os, mas como quem goza uma verdade que o fere, juntando à dor da ferida a consciência de ter compreendido os deuses.

Sou o contrário dos espiritualistas simbolistas para quem todo o ser, e todo o acontecimento, é a sombra de uma realidade de que é a sombra apenas. Cada coisa, para mim, é, em vez de um ponto de chegada, um ponto de partida. Para o ocultista tudo acaba em tudo; tudo começa em tudo, para mim.

Procedo, como eles, por analogia e sugestão, mas o jardim pequeno que lhes sugere a ordem e a beleza da alma, a mim não lembra mais que o jardim maior onde possa ser, longe dos homens, feliz a vida que o não pode ser. Cada coisa sugere-me não a realidade de que é a sombra, mas a realidade para que é o caminho.

O jardim da Estrela, à tarde, é para mim a sugestão de um parque antigo, nos séculos antes do descontentamento da alma.

(Bernardo Soares -- LIVRO DO DESASSOSSEGO)