28 de julho de 2009

time is money

O PAPALAGUI NÃO TEM TEMPO

O
Papalagui gosta do metal redondo e do papel pesado; gosta de meter para dentro da barriga muitos líquidos que saem das frutas mortas, além da carne do porco e da vaca, e de outros animais horríveis; mas ele gosta, principalmente, daquilo que não se pode pegar e que, no entanto, existe: o tempo. Fala muito no tempo, diz muita tolice a respeito do tempo. Nunca existe mais tempo do que aquele que vai do nascer ao pôr do sol e, no entanto, isto nunca é suficiente para o Papalagui.

O
Papalagui nunca está satisfeito com o tempo que tem; e acusa o Grande Espírito por não ter lhe dado mais. Chega a blasfemar contra Deus, contra a sua grande sabedoria, dividindo e subdividindo em pedaços cada dia que se levanta de acordo com um plano muito exato. Divide o dia, tal qual um homem partiria um côco mole com uma faca em pedaços cada vez menores. Todos os pedaços têm nome: segundo, minuto, hora. O segundo é menor do que o minuto, este é menor do que a hora; juntos, minutos e segundos formam a hora e são precisos sessenta minutos e uma quantidade maior de segundos para fazer o que se chama hora.

É uma coisa complicada que nunca entendi porque faz mal, estar pensando mais do que é necessário em coisas assim pueris. Mas o
Papalagui faz disso uma ciência importante: os homens, as mulheres, até as crianças que mal se têm nas pernas usam tanga, e correntes grossas de metal, ou pendurada no pescoço, ou atadas com tiras de couro no pulso, certa pequena máquina, redonda, na qual lêem o tempo, leitura que não é fácil, que se ensina às crianças, aproximando-lhes do ouvido a máquina para divertí-las.

Esta máquina fácil de carregar em dois dedos, parece-se por dentro com as máquinas que existem dentro dos grandes navios, que todos vós conheceis. Mas também existem máquinas do tempo grandes e pesadas, que se colocam dentro das cabanas, ou se suspendem bem alto para serem vistas de longe. Para indicar que se passou uma parte do tempo, há do lado de fora da máquina uns pequenos dedos; ao mesmo tempo, a máquina grita e um espírito bate no ferro que está do lado de dentro. Sim, produz-se muito barulho, um grande estrondo nas cidades européias quando uma parte do tempo passa.

Ao escutar este barulho, o
Papalagui queixa-se: "Que tristeza que mais uma hora tenha se passado". O Papalagui faz, então uma cara feia, como um homem que sofre muito; e no entanto, logo depois, vem outra hora novinha.

Só consigo entender isso pensando que se trata de doença grave. "O Tempo voa!"; "O Tempo corre feito um corcel!"; "Dêem um pouco mais de tempo": são as queixas do Branco.

Digo que deve ser uma espécie de doença porque, supondo que o Branco queira fazer alguma coisa, que seu coração queime de desejo, por exemplo, de sair para o sol, ou passear de canoa no rio, ou namorar sua mulher, o que acontece? Ele quase sempre estraga boa parte do seu prazer pensando, obstinado: "Não tenho tempo de me divertir". O tempo que ele tanto quer está ali, mas ele não consegue vê-lo. Fala em uma quantidade de coisas que lhe tomam o tempo, agarra-se, taciturno, queixoso, ao trabalho que não lhe dá alegria, que não o diverte, ao qual ninguém o obriga se não ele próprio. Mas, se de repente vê que tem tempo, que o tempo está ali mesmo, ou quando alguém lhe dá um tempo – os
Papalaguis estão sempre dando tempo uns aos outros, é uma das ações que mais se aprecia – aí não se sente feliz, ou porque lhe falta o desejo, ou está cansado do trabalho sem alegria. E está sempre querendo fazer amanhã o que tem tempo para fazer hoje.

Certos
Papalaguis dizem que nunca têm tempo: correm feito loucos de um lado para o outro; como se estivessem possuídos pelo aitú; e por onde passam levam a desgraça e o pavor por terem perdido o seu tempo. É um estado horrível, esta possessão que não há médico que cure, que contagia muitos homens e os faz desgraçados.

Todo
Papalagui é possuído pelo medo de perder seu tempo. Por isso todos sabem exatamente (e não só os homens, mas as mulheres e as crianças), quantas vezes a Lua e o Sol saíram desde que, pela primeira vez viram a grande luz. De fato, isso é tão sério que, a certos intervalos de tempo, se fazem festa com flores e comes e bebes. Muitas vezes percebi que achavam esquisito eu dizer, rindo, quando me perguntavam quantos anos tinha: "Não sei..." "Mas devias saber". Calava-me e pensava que era melhor não saber.

Ter tantos anos significa ter vivido um número preciso de Luas. É perigosa essa maneira de indagar e contar o número das luas porque assim se chega a saber quantas Luas dura a vida da maior parte dos homens. Todos prestam muita atenção nisso e, passando um número muito grande de Luas, dizem: "Agora, não vou demorar a morrer". E então essas pessoas perdem a alegria e morrem mesmo dentro de pouco tempo.

Pouca gente há na Europa que tenha tempo, de fato; talvez ninguém mesmo. É por isto que quase todos levam a vida correndo com a velocidade de pedras atiradas por alguém. Quase todos andam olhando e balançando com os braços para caminhar o mais depressa possível. Se alguém o faz parar, dizem, mal-humorados: "Não me aborreças, não tenho tempo, vê se aproveitas melhor o teu.". Dá a impressão de que aquele que anda depressa, vale mais e é mais valente do que aquele que anda devagar.

Vi um homem com a cabeça estourando, os olhos virados, a boca aberta feito a de um peixe agonizante, a cara passando de vermelha a verde, batendo com as mãos e os pés, porque um criado tinha chegado um pouquinho mais tarde do que prometera. Esse pouquinho era para ele um grande prejuízo, prejuízo irreparável. O criado teve de ir-se embora, o
Papalagui expulsou-o e recriminou-o: "Roubaste-me tempo demais! Quem não presta atenção ao tempo, não merece o tempo que tem!".

Só uma vez é que deparei com um homem que tinha muito tempo, que nunca se queixava de não tê-lo, mas era pobre; sujo, e desprezado. Os outros passavam longe dele, ninguém lhe dava importância. Não compreendi essa atitude porque ele andava sem pressa, com os olhos sorrindo, mansa, suavemente. Quando lhe falei, fez uma careta e disse, tristemente: "Nunca soube aproveitar o tempo; por isto, sou pobre, sou um bobalhão". Tinha tempo, mas não era feliz.

O
Papalagui emprega todas as forças que tem tentando alongar o tempo o mais possível. Serve-se da água e do fogo, da tempestade e dos relâmpagos que brilham no céu, para fazer parar o tempo. Põe rodas de ferro nos pés, dá asas às palavras que diz para ter mais tempo. Mas para que todo este esforço? O que é que o Papalagui faz com o tempo? Nunca compreendi bem, pelos seus gestos e suas palavras, ele sempre tenha me dado a impressão de alguém a quem o Grande Espírito convidou para um fono.

Acho que o tempo lhe escapa tal qual a cobra na mão molhada, justamente porque a segura com força demais. O
Papalagui não espera que o tempo venha até ele, mas sai ao seu alcance, sempre, sempre com as mãos estendidas e não lhe dá descanso, não deixa que o tempo descanse ao Sol. O tempo é quieto, pacato, gosta de descansar, de deitar-se à vontade na esteira. O Papalagui não sabe perceber onde está o tempo, não o entende e é por isto que o maltrata com os seus costumes rudes.

Ó amados irmãos! Nunca nos queixamos do tempo; amamo-lo conforme vem, nunca corremos atrás dele, nunca pensamos em ajuntá-lo nem em parti-lo. Nunca o tempo nos falta, nunca nos enfastia. Adianta-se aquele dentre nós que não tem tempo! Cada um de nós tem tempo em quantidade e nos contentamos com ele. Não precisamos de mais tempo do que temos e, no entanto, temos tempo que chega. Sabemos que no devido tempo havemos de chegar ao nosso fim e que o Grande Espírito nos chamará quando for sua vontade, mesmo que não saibamos quantas Luas nossas passaram. Devemos livrar o pobre
Papalagui, tão confuso, da sua loucura! Devemos devolver-lhe o verdadeiro sentido do tempo que perdeu. Vamos despedaçar a sua pequena máquina de contar o tempo e lhes ensinar que, do nascer ao pôr do Sol, o homem tem muito mais tempo do que é capaz de usar.

(Extraído de O Papalagui. Comentários de Tuiávii, chefe da tribo nos Mares do Sul. Editora Marco Zero, Rio de Janeiro.)

Neste livro Tuiávii, Chefe da Tribo Tiaveá na Polinésia, relata ao seu povo as suas impressões a respeito do homem branco, seus costumes e sua cosmologia, observados durante uma viagem que fez à Europa. Vários objetos e atitudes tidos por nós como normais, como saber a data em que nasceu, ter uma profissão e pra que serve uma campainha, são descritos por um olhar (ainda) não domesticado pela civilização. Somos tão adestrados por uma ética judaico-cristã-ocidental-capitalista-necessitária que na maior parte das vezes enxergamos as coisas por uma única perspectiva, já de antemão marcada como normal ou anômala, correta ou desviante, bela ou horrenda. Por que não abrir outras janelas, perscrutar outros ângulos, familiarizar o estranho, estranhar o familiar, encontrar, como Lautréamont, a beleza no "encontro fortuito sobre uma mesa de dissecação, de uma máquina de costura e um guarda-chuva”?

Papalagui somos nós, o branco, o estrangeiro, o "civilizado". Traduzido literalmente, é aquele que furou o céu.



Um comentário:

paula; disse...

Travalínguas: "O Tempo perguntou ao Tempo quanto tempo o tempo tem. O Tempo respondeu ao Tempo: 'o Tempo tem taaaanto tempo!'"


"(...) Alice suspirou cansada. 'Acho que você poderia aproveitar melhor o seu tempo em vez de desperdiçá-lo propondo charadas que não têm resposta.'
'Se você conhecesse o Tempo como eu conheço', disse o Chapeleiro, 'não falaria em desperdiçá-lo como se fosse uma coisa. O Tempo é um senhor.'"